PERIFERIA GEOGRÁFICA

NO SRI LANKA, 74 ANOS DE CRISE

O país insular do sudeste asiático está afundando — e dessa vez não tem nada a ver com o aquecimento global.

Revista Torta

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Por Sérgio de Toledo

Editado por Eduarda Motta e Elisa Romera

A coluna Periferia Geográfica te pergunta: o que você sabe sobre o Sri Lanka? || Foto: Reprodução/DIRE

Em edição de 2017 do quadro “Destinos Espetaculares” — antiga atração de viagens do dominical da TV Record “Domingo Espetacular” — o eterno Paulo Henrique Amorim introduziu o destino da vez com a seguinte chamada: “Um dos países mais exóticos do mundo. Até o nome é estranho: Sri Lanka!”.

E o mestre não mentiu — a nação insular localizada ao sul da Índia, separada do vizinho mais famoso apenas pelo Estreito de Palk, conta com tradições milenares que podem soar excêntricas aos ocidentais, de vestimentas como o sarongue — espécie de saia masculina — à pescaria em pettas — onde os pescadores se penduram em palafitas no meio do mar para içar os pescados.

Apesar disso, em seu último centenário — mais precisamente, desde que conquistou sua independência do Império Britânico, em 1948 — os srilanqueses têm enfrentado contratempos que são figurinhas carimbadas nas nações em desenvolvimento de todo globo terrestre: crises políticas e econômicas que parecem se suceder umas às outras, sem feriado nem dia santo.

Más administrações em sequência têm feito do Sri Lanka um inadimplente compulsório. Empréstimos retirados de fundos internacionais e de potências próximas — em especial, Índia e China — fizeram com que, nos últimos anos, o Sri Lanka consecutivamente suspendesse o pagamento de suas dívidas externas de modo unilateral.

Em um português mais claro, o calote virou a regra na gestão econômica srilanquesa.

E, com a casa completamente desarrumada, o Sri Lanka construiu a tempestade perfeita para que governantes populistas e rebeldes armados protagonizassem a política nacional, acentuando a crise generalizada e tirando cada vez mais poder de compra da população.

O valor do limão é um retrato ilustrativo — de 2021 para 2022, o preço do fruto aumentou em 255% nos mercados srilanqueses.

Quando, com calma, os cidadãos do Sri Lanka olham para o seu entorno, nada parece estar no lugar certo. “CRISE” se tornou uma palavra de ordem em letras garrafais.

MULTICULTURAL POR NATUREZA

O Sri Lanka é circunscrito, sem sombra de dúvidas, por um território histórico. O primeiro registro de ocupação na ilha remete ao século VI a.C. com a chegada do povo cingalês — até hoje, maioria étnica no país.

Alguns séculos depois — mais precisamente, no século III — , tâmeis do sul da Índia desceram até o Sri Lanka e passaram a integrar uma significativa minoria étnica. Esse movimento, milênios mais tarde, seria o prelúdio para que o país se transformasse em uma verdadeira panela de pressão.

Com o egresso do Império Português em 1630, holandeses e britânicos também estabeleceram colônias no Sri Lanka nos séculos que se seguiram, durante o período das Grandes Navegações. A baía do país sempre foi tida como um porto estratégico do Oceano Índico.

Os srilanqueses somente teriam um Estado para chamar de seu em 1948 — fruto de um tratado costurado de forma pacífica com o Império Britânico. Até hoje, o inglês é muito utilizado para fins educacionais na ilha, embora o cingalês e o tâmil sejam os idiomas oficiais.

Evidentemente, o Sri Lanka também compartilha profundas raízes históricas com a Índia. Dos tuk-tuks aos mercados ao ar livre, o cotidiano srilanquês se aproxima em vários aspectos do indiano.

Todavia, um elemento foi crucial para colocar Sri Lanka e Índia em universos diferentes: o elo religioso.

Afinal de contas, o Sri Lanka é um templo milenar do budismo — com cerca de 70% da população adepta à corrente de pensamento de Sidarta Gautama. Hindus (13%), Mulçumanos (9%) e Cristãos (8%) compõem fatias menores — mas relevantes — da comunidade srilanquesa.

Poucas nações abrigam tamanha pluralidade religiosa como o Sri Lanka — pelas origens budistas, pela proximidade com os hindus indianos e pela influência dos católicos portugueses e mouros mulçumanos no desenrolar de sua história. || Foto: Reprodução/Chamila Karunarathne/Anadolu Agency

Essa diversidade fez do Sri Lanka um destino constantemente lembrado nas agências de viagens — o turismo, não à toa, representa a quinta maior fonte de renda do país.

O caldeirão cultural é, com toda a certeza, uma das marcas mais fortes da identidade nacional srilanquesa.

Na casa dos muitos povos, entretanto, dois deles chegaram até a conclusão de que o Sri Lanka havia ficado pequeno para ambos — pavio que inflamou cada vez mais depois da libertação do domínio britânico.

Não é um erro dizer que a independência, na verdade, foi o primeiro ato da Guerra Civil do Sri Lanka.

CINGALESES E TÂMEIS: PARES SÃO PARES

Conforme já sabemos, cingaleses e tâmeis foram os dois primeiros grupos étnicos a se instalarem na ilha do Sri Lanka.

Os dois povos, no entanto, historicamente encontram mais diferenças do que semelhanças. Enquanto os cingaleses são devotos do budismo, os tâmeis são, em sua maioria, constituídos de hindus e católicos romanos. Para mais, ambos os povos, literalmente, não falam a mesma língua — sendo letrados no cingalês e no tâmil, respectivamente.

A história nos mostra que toda diferença gera estranhamento. E, se não houver iniciativa de ambas as partes para uma aproximação tranquila e saudável, o estranhamento inevitavelmente se torna indignação — e da indignação nasce o disparate de que os “outros” não deveriam ter os mesmos direitos que “nós”.

Assim que o Sri Lanka se tornou um Estado independente, a minoria tâmil passou a denunciar que os cingaleses — agora governo — estavam sistematicamente discriminando os seus, criando entraves para o acesso dos tâmeis aos cargos públicos e às vagas na universidade.

À época, o governo cingalês afirmou que as políticas de privilégio aos seus eram, na verdade, uma reparação histórica. De acordo com os cingaleses — e sem embasamento — os britânicos concediam tratamento preferencial aos tâmeis durante o período colonial.

Esmagados por um sentimento constante de desamparo e injustiça, os tâmeis se mobilizaram como guerrilha armada a partir dos anos 1970. Os Tigres de Liberação do Tâmil (LTTE, da sigla em inglês), exigiam a criação de um Estado tâmil na região noroeste e nordeste do Sri Lanka, conhecida como “Tamil Eelam”.

O estrago já estava feito — e o Sri Lanka imergiu em uma guerra civil. Os conflitos entre o governo central cingalês e os rebeldes tâmeis se tornaram parte do dia a dia dos cidadãos srilanqueses, com períodos de cessar-fogo e períodos de violência.

A guerra se arrastou por décadas. Embora tanto cingaleses quanto tâmeis vociferassem pelo seu reconhecimento como verdadeiros habitantes do Sri Lanka, o processo histórico mostrava que ambos os lados haviam se tornado irmãos do mesmo chão.

Era uma ação frequente dos Tigres Tâmeis realizar atentados suicidas contra alvos civis e militares para abalar o governo e aterrorizar a população. Além disso, o recrutamento de crianças também era uma prática comum entre os LTTE. || Foto: Reprodução/AP Photo

O fim da conflagração entre cingaleses e tâmeis se deu somente em 2009 — e, como não poderia ser diferente, sob circunstâncias sangrentas.

Após renunciar oficialmente a um acordo de cessar-fogo assinado em 2002, o governo central decidiu avançar sem medir forças contra regiões controladas pelos Tigres Tâmeis. O resultado foi uma verdadeira chacina — e milhares de não-combatentes foram mortos durante a ação.

Da operação militar que encerrou a guerra civil, dois nomes ergueram-se como heróis entre os budistas-cingaleses: o do presidente Mahinda Rajapaksa e o de seu irmão, Gotabaya Rajapaksa, Secretário de Defesa que coordenou a campanha brutal contra os rebeldes tâmeis.

O saldo de vítimas que a Guerra Civil do Sri Lanka fez no decorrer de seus 26 anos oscila entre 80 e 100 mil mortos, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU) — sendo destes, 40 mil civis.

O GOVERNO DOS DOIS IRMÃOS

O clã Rajapaksa sempre foi peixe grande na política srilanquesa, controlando distritos locais do país desde o século XX. Até que, em 2005, Mahinda Rajapaksa — o irmão mais velho — venceu as eleições e chegou ao poder, onde permaneceu durante mais de uma década, alternando entre os cargos de presidente e primeiro-ministro.

O irmão mais novo, Gotabaya — um estrategista militar, muitas vezes apelidado de “Exterminador” pela campanha contra os Tigres Tâmeis — , participou ativamente do governo de Mahinda, servindo como Secretário do Ministério da Defesa e do Desenvolvimento Urbano entre 2005 e 2015.

O primeiro mandato dos Rajapaksa ficou fortemente marcado pela imprudência fiscal. Visando custear seus projetos políticos e fortalecer sua popularidade, Mahinda recorreu a estratégias como buscar crédito internacional, suspender impostos e arrojar os gastos nacionais acima da renda e da produção de bens.

Para além disso, a comunicação do governo com a população srilanquesa era uma câmara de eco. Os governistas não detalhavam com transparência o porquê dos empréstimos, como seriam direcionadas as verbas e, muito menos, como o Sri Lanka faria para honrar seus compromissos com os credores no futuro.

Mahinda Rajapaksa, à esquerda, e Gotabaya Rajapaksa, à direita. Além da falta de responsabilidade fiscal, os irmãos também são frequentemente acusados pela oposição de aparelhar as Forças Armadas, como uma forma de dar respaldo aos seus projetos políticos. || Foto: Reprodução/Reuters

Com a economia enfraquecida, em 2015 o parlamento srilanquês elegeu Ranil Wickremasinghe como seu primeiro-ministro — um ex-assessor de Mahinda e líder da oposição. A mudança de ares colocava fim a uma década dos Rajapaksa no poder.

Quatro anos mais tarde, entretanto, um evento mudaria para sempre o trajeto da história do Sri Lanka. E então os Rajapaksa voltariam ao controle.

NO DOMINGO DE PÁSCOA, UM BANHO DE SANGUE

Ainda era manhã do dia 21 de abril de 2019 quando se escutaram os estrondos das primeiras explosões em quatro cantos diferentes do Sri Lanka.

Era Domingo de Páscoa e católicos romanos de todo o país se reuniam nas igrejas para celebrar a ressurreição de Cristo.

Apesar disso, aquela manhã não entraria para a história do Sri Lanka como um dia de comemorações e festividades. Pelo contrário.

Três igrejas e quatro hotéis de luxo — onde estrangeiros estavam hospedados — foram surpreendidos simultaneamente por homens e mulheres-bomba. Os cristãos srilanqueses eram os alvos, isso ficaria claro conforme as peças do quebra-cabeça começavam a se encaixar.

Aproximadamente 290 pessoas perderam suas vidas nos atentados — orquestrados em quatro cidades ao mesmo tempo — enquanto mais de 500 ficaram feridas.

A ação terrorista, consumada exatos 10 anos após o término da guerra civil, fez com que cidadãos de todo Sri Lanka resgatassem as memórias ainda vivas do período sombrio de conflitos intermináveis — do ciclo de constante instabilidade e medo, da rotina de explosões e mortes.

O Sri Lanka enfrentou 26 anos de uma guerra civil feroz, entre 1983 e 2009 — ainda assim, os atentados de Páscoa de 2019 são tidos como o maior ataque terrorista da história do país. || Foto: Reprodução/AFP

A dor das perdas, contudo, não terminaria junto com a Páscoa.

O ataque — posteriormente reivindicado por um grupo islâmico jihadista com histórico de ataques menores também contra os budistas cingaleses — abriu espaço para que um discurso de ordem e pátria forte florecesse no seio da sociedade srilanquesa — e as eleições gerais estavam marcadas para novembro daquele mesmo ano.

Em uma campanha populista inteiramente voltada para o nacionalismo srilanquês, Gotabaya Rajapaksa se elegeu presidente com 52% dos votos, indicando seu irmão, Mahinda, para a função de primeiro-ministro.

O Exterminador, de fato, havia voltado — e os Rajapaksa também.

RECONQUISTANDO O DESTINO

Embora a administração dos dois irmãos já fosse velha conhecida da população srilanquesa, essa seria a primeira vez que Gotabaya e Mahinda desempenhariam as duas principais funções executivas do país ao mesmo tempo.

Além de lotear cargos públicos com outros membros da família Rajapaksa, os irmãos deram prosseguimento à agenda econômica de quase nenhuma austeridade financeira.

Com as datas de vencimento dos empréstimos feitos ainda na gestão de Mahinda se aproximando, o Sri Lanka entrou em queda livre nos índices internacionais que mensuram o grau de confiabilidade dos países em arcar com as suas dívidas.

China, Índia e, em especial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) estavam entre os cobradores que batiam à porta do Sri Lanka.

Sem aval para angariar dinheiro com mais empréstimos no exterior, o governo srilanquês começou a queimar suas reservas cambiais para evitar uma insolvência total das contas públicas — em cerca de dois anos, o montante foi erodido em 70%.

Com a crise, mais uma vez, se espalhando pela ilha, a população acusou o golpe. A estagflação, os apagões diários que chegavam a durar mais de 10 horas e a falta de bens básicos nos mercados colocaram os cidadãos em inquietação.

Mesmo com um plano de resgate executado pelo governo Rajapaksa junto ao FMI, o Sri Lanka anunciava consecutivos calotes em suas dívidas externas.

Após anos de uma política econômica equivocada, as contas públicas srilanquesas estavam em destroços. O Sri Lanka era uma nação em processo de falência.

A recessão mundial causada pela pandemia de COVID-19 em 2020 e 2021 veio para agravar ainda mais a questão srilanquesa. A postura do presidente Gotabaya foi de apostar todas as suas fichas na indústria do turismo, ansiando pela retomada das atividades econômicas.

A população do Sri Lanka, contudo, não tinha a mesma paciência do presidente. Puxados por estudantes universitários, a partir de março de 2022, manifestantes passaram a encher as ruas da capital comercial, Colombo, e de outras grandes cidades do país.

Provavelmente pela primeira vez nos últimos 100 anos, os srilanqueses estavam unidos e caminhando na mesma direção. Cingaleses, tâmeis, clérigos budistas, cristãos, islâmicos, hindus, estudantes, professores, veteranos militares — todos em coro uníssono exigiam furiosamente a renúncia dos dois irmãos, responsabilizados pelo inferno econômico no qual o Sri Lanka se arruinava.

No último dia 9, uma vitória maiúscula dos manifestantes: Mahinda cedeu às pressões e renunciou ao cargo de primeiro-ministro. O presidente Gotabaya, apesar disso, dobrou a aposta e decretou estado de emergência em toda a ilha, em uma artimanha para aumentar seus poderes para coibir os manifestantes.

Os protestos, no entanto, continuam — embalados pelo bordão “Go Home, Gota!”. Ao que tudo indica, da Casa do Presidente — palácio presidencial do Sri Lanka — , Gotabaya Rajapaksa acredita já estar em sua casa por direito.

Recorrendo às origens budistas, os srilanqueses sabem melhor do que qualquer outro povo que só há um tempo em que é fundamental despertar.

E esse tempo é agora.

A coluna Periferia Geográfica te pergunta: e agora, o que você sabe sobre o Sri Lanka? || Foto: Reportagem/Eranga Jayawardena/The Associated Press

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